Deixar Petra não foi fácil! Ainda estava viva em minha memória as emoções de conhecer Petra, um dos lugares mais fascinantes que já estive na vida! Manja o sentimento de que você tem que partir querendo ficar? Pois é, era assim que estava me sentindo… e ainda tinha a certeza que meu caminho até o Mar Morto não seria nada fácil! Afinal, teria que cruzar o deserto da Jordânia, com temperaturas acima dos 40°C, com pouquíssimos pontos de apoio, na região mais baixa do planeta, 420 metros abaixo do nível do mar. Tudo isso me deu uma preguiça danada! No entanto, o dever falou mais alto! E lá fui eu… me esfalfando como um burro, ou melhor, como um camelo, em direção a mais um sonho: Conhecer o Mar Morto!
Nas primeiras horas dessa empreitada, depois de passar uns perrengues num sobe e desce danado, com um trecho sem asfalto, peguei um delicioso descidão que me levou de 850 m de altitude para o deserto da Jordânia, já abaixo do nível do mar. Tive a sensação que alguém abriu a porta do forno e esqueceu de fechar! Um bafo quente começou a me açoitar! Ali, depois de poucas horas, tive a certeza que toda o estoque de água que carregava era desnecessário. A água atingiu uma temperatura que depois do primeiro litro, ficou impossível de tomar. Empapuçou, manja? Aí, fui parando os motoristas, que sempre me presenteavam com uma água no mínimo fresca. Com a fase da lua cheia, e o pouco movimento na estrada, adotei a estratégia de trocar o dia pela noite. Acordava as quatro da manhã, pedalava até sete e meia, oito horas, procurava um lugar com ar condicionado para descansar, que geralmente foi posto policial ou de gasolina, e seguia novamente entre seis e dez e meia, onze horas da noite. Com isso, pedalei na maioria do tempo com temperaturas entre 30 e 35°C. Isso mesmo! Essa é a temperatura média do deserto da Jordânia nesta época do ano!
Foto do meu GPS exatamente no horário do pôr do sol. Deserto da Jordânia.
Estrada entre Petra e o Mar Morto. Deserto da Jordânia.
Lua cheia no enardecer. Deserto da Jordânia.
Amanhecendo no deserto da Jordânia.
Jordânia.
Eu havia pesquisado sobre o Mar Morto e achei fotos incríveis, com estruturas de sal e um mar translúcido maravilhoso. No entanto, não foi com esse senário que me deparei.
É fato que o Mar Morto vem sofrendo drásticas mutações ao longo dos últimos anos e está cada vez mais difícil acessar suas margens. Para se ter uma ideia, sua superfície diminuiu mais de 35% desde 1954. Se continuar nesta toada, ele desaparecerá em menos de 100 anos. Situado na divisa entre Jordânia e Israel, o Mar Morto tem esse nome devido a enorme concentração de sal, que é pelo menos 10 vezes maior que a de um oceano normal, possuindo apenas alguns tipos de arqueobactérias (organismos que habitam ambientes hipersalinos) e algas. Essa concentração vem subindo porque seu principal afluente, o Rio Jordão, vem diminuindo seu desague devido a várias transposições de irrigações feitas pelos governos de Israel e Jordânia nos últimos anos. Ou seja, a evaporação e a diminuição do desague do rio, diminuem a quantidade de água, mas a quantidade de sal continua a mesma! Com essa diminuição drástica, ano após ano ele vem quebrando recordes por ser o lugar mais baixo da terra. Em 1930 ele estava a -390 metros e agora está a – 427 metros abaixo do nível do mar. É praticamente impossível afundar nas águas do Mar Morto devido a combinação entre a enorme quantidade de sal e outros componentes como cloreto de magnésio, cloreto de sódio e cloreto de cálcio. Acontece com seu corpo a mesma coisa quando colocamos uma bola no fundo da piscina. É divertido! O corpo é impulsionado com força para superfície. A água é viscosa, tem cheiro hora de ovo podre, hora de óleo, e a temperatura é super agradável. No entanto, não consegui encontrar as estruturas de sal gigantescas e nem o verde translúcidos de suas águas que vi nas fotos.
Estruturas de sal no Mar Morto, Jordânia.
Estrutura de sal no Mar Morto, Jordânia.
Estrutura de sal no Mar Morto, Jordânia.
Estrutura de sal no Mar Morto, Jordânia.
Pôr do sol, Mar Morto, Jordânia.
Agora estou indo para a tensa fronteira entre a Jordânia e a Palestina. Vem comigo!
Com um clima muito seco, forte calor, longas subidas e poucos estabelecimentos abertos durante o dia devido ao Ramadã, pedalar pela Jordânia nesta época do ano não é nada fácil. No entanto, se você topar o desafio, vai se deparar com um povo hospitaleiro e com paisagem de tirar o fôlego!
Amã, capital da Jordânia, possui cerca de 2 milhões de habitantes, sendo uma das mais antigas cidades continuamente habitadas do mundo, com referências bíblicas de 1200 a.C., e evidências arqueológicas que datam da Idade da Pedra, 7000 anos a.C.. Construída em meio a colinas que variam entre 800 a 1400 m de altitude, posso dizer que a cidade não é amiga dos ciclistas, com ruas íngremes, motoristas apressados e muitas escadarias. Praticamente monocromática, e com pouquíssimas árvores, no geral é pouco atraente, no entanto, do alto de uma de suas colinas, a vista se expande e a cidade se revela.
Amã, Jordânia.
Escadarias típicas de Amã, Jordânia.
Teatro romano em Amã, Jordânia.
Entre Amã e fantástica Petra, optei por pedalar pela estrada 35, mais conhecida como King´s Highway, uma das mais antigas estradas do oriente médio. Sinuosa e ondulada ela cruza algumas das mais belas paisagens do país. Com pouco movimento, a estradas passa por vales colossais, e pequenas cidades e vilas, possibilitando interagir com a simpática população rural do país.
Estamos no Ramadã, época em que os muçulmanos jejuam entre o nascer e o pôr do sol. Com isso, os estabelecimentos comerciais que vendem comida só abrem no final da tarde, me obrigando a viajar mais pesado devido ao estoque de comida e principalmente de água. A temperatura no meio do dia chega perto dos 40°C. Com isso, evito pedalar nas horas mais quentes, dando preferência para as primeiras horas da manhã e o final da tarde. O vento sopra constante, quase sempre na mesma direção, me pegando de lado. Chega a ser engraçado! Do lado que ele chega, refresca, do outro lado sinto a pele arder. O clima de semi deserto é propício para a proliferação de mosquitos . Quando a velocidade diminui nas subidas, sou vorazmente atacado! Nojento!
Tive poucas oportunidades de provar a gastronomia local. Isso só aconteceu em Amã, quando Saeed, meu anfitrião, preparou o Bukhari, um delicioso arroz aromatizado com ervas e especiarias, quase sempre acompanhado com amêndoas fritas, iogurte, salada tipo vinagrete e frango assado ou ensopado. Também comi este prato na casa de um local que me recebeu no final do dia. Hansee, me ofereceu comida e a sala de estar para eu passar a noite. Durante o dia, estou me dando bem, hora com a coalhada, hora com homus, hora com babaganuche. Eles são vendidos em potinhos de 250 gr, tamanho perfeito para uma refeição. Eu adiciono azeite e cebola e como com pão sírio. Rápido, barato e delicioso. Também carrego sempre comigo azeitonas e algumas frutas secas, dando preferência as tâmaras. As frutas também são uma boa opção. Uva, pêssegos, damascos, nectarinas, ameixas, laranjas, maças e peras. Também tem melancia e melão. Todas uma delícia!
Bukhari, prato típico da Jordânia.
No segundo, dos quatros dias que levei na travessia entre Amã e Petra, bati o recorde de acensão ao cruzar dois grandes vales. Foram 2288m de subida em 111,5 km em mais de 12 horas de empenho! Comecei o pedal perto das seis da manhã e acabei depois das 9 da noite, já escuro. Foi um dos dias mais difíceis de toda a viagem!
King´s Highway, Jordânia.
Vale na Jordânia.
Longas subidas na King´s highway, Jordânia.
Vista da King´s Hiway, Jordânia.
Geralmente a população local me recebe muito bem! Com destaques para as crianças, que sempre tentam uma aproximação. Quando sou convidado a entrar nas casas, não tenho contato com a parte feminina da família. Mãe e filhas ficam geralmente na cozinha ou em um cômodo isolado. Todos dizem que a Jordânia é um país seguro, com baixos índices de criminalidade. Acho que dei azar, pois minha bandeira do Brasil foi furtada enquanto tentava conexão na internet em um café.
Última foto com a bandeira do Brasil antes de ser furtada. King`s Highway, Jordânia.
Ladeando um cânion na King´s Highway já sem a bandeira. Jordânia.
As crianças se divertem com a minha passagem nas pequenas vilas da Jordânia.
Geralmente sou servido na rua para não ter contato com as mulheres da família. Jordânia.
Petra é o maior sítio arqueológico da Jordânia e o principal destino turístico do país. Considerada uma das novas 7 Maravilhas do Mundo, a região abriga ruínas incrivelmente preservadas. Esculpidas nas encostas das colinas em meio a vales, desfiladeiros e cânions, estima-se que sua ocupação data a partir do ano 1200 a.C., sendo dominada por vários impérios.
O ingresso custa cerca de U$ 70, mas vale a pena! No entanto é preciso muita disposição para longas caminhadas debaixo do sol forte! Camelos, jegues e charretes podem ser alugados. Depois de caminhar por um estreito desfiladeiro, o vale se abre em frente ao “Tesouro”, uma das mais lindas construções que já vi na vida! Aquele do filme do Indiana Jones e a Última Cruzada! É de tirar o fôlego! Inevitável não lembrar da musiquinha característica e de algumas cenas do filme, que é um dos meus favoritos! kkk Tam tam ram tam… tan tan ran… tam tam ram tam… tam tam ram tam tam!!!
Estreito desfiladeiro a caminho do Tesouro em Petra, Jordânia.
Final do desfiladeiro com o Tesouro ao fundo. Petra, Jordânia.
“O Tesouro”. Petra, Jordânia.
Teatro para 4000 pessoas em Petra, Jordânia.
The Royal Tumb´s. Petra Jordânia.
The Royal Tumb´s. Petra. Jordânia.
O passeio segue por encostas incrivelmente esculpidas revelando tumbas, teatros, igrejas! É incrível! Um dos lugares mais especiais que já visitei não só com o Projeto da China para Casa by Bike, mas também em toda a minha vida. Existe a opção de escalar uma grande montanha para chegar ao Monastério, um dos edifícios mais bem preservado da região. Uma longa escada sinuosa de 800 degraus serpenteia o vale e revela detalhes geológicos e vistas pra lá de especiais. Não esqueça de levar água! Uma garrafinha dentro do complexo pode valer 15 vezes mais que o preço cobrado lá fora.
Monastério de Ad-Deir. Petra, Jordânia.
A minha ideia agora é enfrentar o calor para visitar o Mar Morto. Sobe na garupa e vem comigo visitar a região mais baixa da terra, que fica a 400 metros abaixo do nível do mar. De lá, seguimos juntos para a Palestina! Uhuuuu!!!
Além da oportunidade de conhecer parentes distantes, pessoas incríveis e provar as maravilhas gastronômicas, também visitei algumas das principais atrações turísticas do Líbano.
Do alto de uma montanha não muito longe de Beirute, o Santuário de Harissa foi fundado em 1908. A enorme estátua da Virgem Maria, ou Nossa Senhora do Líbano, atrai mais de 2 milhos de fiéis todos os anos, que além de exercitar a fé, aproveitam a linda vista do litoral e do pôr do sol.
Nossa Senhora do Líbano, Harissa, Líbano
Vista de Harissa com Beirute ao fundo. Líbano.
Santuário de Harissa, Líbano.
As montanhas de Faraya abriga a mais badalada estação de inverno do oriente médio. Com quase 2000 m de altitude, as colinas em meio aos vales oferece lindas vistas e o cenário ideal para a pratica de sky. Eu cheguei fora da estação de inverno e não pude mostrar a minha habilidade em ziguezaguear montanha abaixo, mas fica a dica se vier ao Líbano no inverno. O ponto alto da minha visita em Faraya foi ver o dourado do sol brilhar no mar a dezenas de quilômetros…
Monte Faraya, monte Líbano, Líbano.
A caminho do Monte Faraya, Monte Líbano. Líbano.
O complexo turístico de Jeita Grotto é outro ponto muito visitado no país. Descoberta em 1836, essa galeria subterrânea formada por duas cavernas exibe uma enorme variedade de formações geológicas, e a maior estalactite já descoberta com 8,2 m. Um passeio de barco em um rio subterrâneo e uma caminhada de 450 m, além de passeio de teleférico para chegar a entrada da caverna e um trenzinho para descer, fazem parte do complexo turístico que fica a apenas 18 km de Beirute.. É uma ótima atração para as crianças. Infelizmente não é permitido fotografar o interior da caverna.
Estátua do Guardião do Tempo, Jeita Grotto. Líbano.
Os vinhos libaneses são reconhecidamente um dos melhores do oriente médio. Eu aproveitei minha passagem pelo Bekaa Vale para conhecer uma das mais renomadas vinícolas do país.O passeio guiado nas antigas adegas romanas e uma degustação são oferecidos gratuitamente aos visitantes. O passeio dura apenas 45 minutos, e eu gostei bastante…
Ksara Vinícola. Bekaa Valley, Líbano.
Adega Ksara, Bekaa Valley, Líbano
Adega Ksara, Bekaa Valley, Líbano
Adega Ksara, Bekaa Valley, Líbano
Também situado no Vale de Bekaa, entre as cordilheiras do Monte Líbano e Anti-Líbano, o Templo de Baalbek é o maior templo romano fora de Roma. O local foi identificado como um dos primeiros centros de cultos a divindades construídos em homenagem a Júpiter, Baal, e Baco, como centro de adoração ao sol e como centro de adivinhações. Batizada como Heliópolis (cidade do sol), as colunas de 20 m de altura e 2,5 m de diâmetro são originais da época da sua construção e são bastante impressionantes, assim como a base dos templos, com pedras de 1000 toneladas alinhadas e encaixadas perfeitamente. A construção deu início em 138-161 dC. pelo imperador romano Antonio pio. Os principais destaques são os Templo Júpiter e Baco, o mais preservado do oriente Médio.
Templo de Baalbek, Líbano.
Templo de Baalbek, Líbano.
Templo de Baco, Baalbek Templo. Líbano.
Colunas do Templo de Júpiter Baalbek Templo. Líbano.,
Do Vale de Bekaa segui para o Vale de Kadisha escalando o Monte Makmel para conhecer a Floresta de Cedros, ou Cedars forest. Os Cedros de Deus são famosos por ser estampados na bandeira, no passaporte e na carteira pessoal de identificação dos libaneses. É o símbolo master e o orgulho do país. Estima se que o Cedro de Deus, o exemplar mais antigo da floresta, possui mais de 4700 anos. Esta pequena floresta abriga os últimos exemplares de uma floresta que cobria boa parte do território libanês. Sua madeira valiosa e resistente foi explorada por séculos, por diversos povos para construções de embarcações e templos.
Monte Makmel , vista do Vale do Bekaa, Líbano.
Kadisha Vale cercado pelo Monte Makmel, Líbano.
Dois cedros se abraçando. Cedars Forest. Líbano.
Dois cedros se abraçando. Cedars Forest. Líbano.
Cedars Forest. Líbano.
Cedro de Deus, um exemplar de mais de 4700 anos. Cedars Forest, Líbano.
Em Kadisha vale, também conheci algumas alguns mosteiros…
… e me encantei com vistas e fachadas de cidades…
Bcharre, Kadisha vale, Líbano.
Bcharre, Kadisha vale com Monte Makmel ao fundo. Líbano.
Hasroun, Kadisha Vale, Líbano.
Hasroun, Kadisha Vale, Líbano.
O litoral do Líbano também é bastante bonito. Entre Trípoli e Beirute, a parte que conheci, destaco Batroun, mais ao norte e Jbeil, mais próximo de Beirute, com sofisticados restaurantes, bares e discotecas.
Casa Libano-brasileira sendo restaurada em Batroun, Líbano.
Batroun, Líbano.
Batroun, Líbano.
Marina em Batroun, Líbano.
Passei 4 dias em Beirute e confesso que foi um pouco demais para mim. A sombra da guerra terminada em 1991 ainda se faz presente com postos de checagem militar por toda cidade. Barreiras, trincheiras, tanques, prédios mutilados… infelizmente não tenho muito a recomendar em Beirute. Um passeio pela região de Najme Square, um lugar reconstruído depois da guerra, o Museu Nacional foi tudo que achei mais atraente…
Beirute, Líbano.
Mesquita Mohammed Al-Amin, Beirute, Líbano
Ruínas ao fundo da Mesquita de Mohammed e da Catedral de São George, Beirute, Líbano.
Catedral de São George e Mesquita de Mohammed, Beirute Líbano.
Nijme Square, Beirute, Líbano.
Museu Nacional. beirute, Líbano.
Imagem da Virgem Maria em frente casa típica em Beirute, Líbano.
Táxi de beirute, Líbano.
Tanque de guerra patrulhando as ruas de Beirute, Líbano.
Fachada de prédio mutilado pela guerra em Beirute, Líbano.
Lembranças triste da guerra do Líbano, Beirute.
Passei duas semanas e meia no Líbano que foram muito especiais. Sem dúvida um dos países que mais me emocionei por diversas razões. Sem saída, pois as fronteiras terrestres estão fechadas na Síria e Israel, sigo de avião para Amã, a capital da Jordânia e de lá, dou continuidade a minha viagem de bicicleta que acaba de ultrapassar a marca dos 30.000 km pedalados.
Vem comigo! Continuo contando com seu apoio!
O Líbano continua me emocionando muito! Me conectando com um passado distante que fazem meus olhos transbordarem.
Quem me conhece de longa data sabe da relação que eu tive com meu Vô Luis. Mais que um Avô, era um grande amigo e confidente. Ahh!!! Quantos segredos e quanta cumplicidade! Eu sempre soube o lugar onde ele escondia a pinguinha santa de cada dia dos olhos atentos da minha avó, e quando estava com sede, ele me pedia para buscar água! ” _ Ô Fião, busca uma água lá pro Vô! kkkk
Nascido em 1922, o Vô, como era carinhosamente chamado por todos, herdou muitos hábitos, como não podia ser diferente, de seus antepassados libaneses. Muitos desses costumes, eu e minha família herdamos também. Carne crua, mal passada e com gordura. Nosso churrasco é assim… e hoje fico feliz em ver minha filha e meus sobrinhos se esbaldando na picanha mal passada… tipo boi berrando, manja? kkk É claro que nos padrões de hoje, reduzimos a gordura e a carne crua, mas essas delícias continuam nos tentando, seja no quibe cru ou na suculenta gordurinha da picanha, contra-filé ou costelinhas…
Na minha infância e adolescência, meus avós moravam em um sítio que abastecia a minha casa com frutas e verduras, leite e queijo fresco, ovos e tudo mais que uma pequena propriedade podia produzir. No final do ano, era comum abater animais para a nossa ceia de natal e ano novo. Peru, frango, porco, carneiro!
Eu devia ter uns 16 ou 17 anos. Me lembro daquele dia como se fosse ontem! Foi meu primeiro pileque em família… Guardado em segredo por longa data!
Enquanto minha avó caprichava nos assados e preparativos para a farta mesa de natal, o Vô era responsável pelo abate e dissecação dos animais com seu fiel companheiro Domingo Rita. E naquele ano, eu fui promovido a auxiliar de ajudante. Depois de abatido, o animal era pendurado em uma mangueira e o trabalho era iniciado, sempre com uma garrafa de cachaça ao lado (para dar sabor e maciez a carne kkk). Atento, enquanto acompanhava o aço da navalha destrinchando a carne fresca, era responsável por encher o copo dos dois parceiros. Ali, aprendi a lição que os trabalhadores devem ser bem tratados! kkk. Cada etapa cumprida, uma golada! O animal que ele mais gostava de trabalhar era o carneiro. Simplesmente por um motivo! O fígado!
Libanês abatendo um animal da mesma forma que meu avô fazia debaixo da mangueira do Sítio Progresso, na cidade de Oriente-SP. Líbano
Eu sempre conto para meus amigos que meu avô gostava de comer fígado de carneiro cru, e todos ficam perplexos ou não acreditam muito na história. Reconheço que é exótico! Sofisticado e requintado, este prato não está ao alcance de todos, pois exige um paladar apurado e muita coragem! kkk. Nunca vi isso em lugar nenhum, a não ser debaixo da mangueira do Sítio Progresso, tornando difícil comprovar a história. E muitas vezes passei por mentiroso.
Embalado com os goles de cachaça, criei coragem e experimentei! Meio que querendo dar uma de bom, impressionar meu Vô e gostando da iguaria, abusei da cachaça e do aperitivo, que resultaram em ressaca e diarreia brava no dia seguinte. Nunca vou esquecer essa história!
Bom, enquanto esperava pelo encontro com a minha família libanesa no final de semana, fiz um passeio de 3 dias pelo interior visitando as principais atrações turísticas do país com meu anfitrião Micho Saliba. Sabendo do meu interesse por gastronomia, Micho também me levou a restaurantes ótimos, com vários pratos típicos da cozinha libanesa que todos conhecem… Quibe cru, tabule, homus, esfiha, falafel, fattoush, labine (coalhada), cafta, charuto e muitas outras delícias, como pão, azeitonas e azeites. No entanto, em um típico restaurante nas montanhas perto de Baskinta, terra natal dos meus bisavós, fui surpreendido com fígado e gordura de carneiro crus!
Quando vi a iguaria, me emocionei, e mesmo antes de provar, pude sentir o gosto característico do fígado se desmanchando na boca! Gelado, o fígado combina com a textura macia e suculenta da gordura, que possui um sabor particular, que a princípio me lembrou um bom azeite de olivas. É uma gordura específica, da parte traseira perto das genitais.
Reencontrar essa iguaria, me lembrou histórias que foram puxando outras histórias. Minha memória reativou sentidos e sentimentos e a saudade dos meus avós! E como costumo plagiar de algum lugar, lá vai uma frase que acabei de inventar (kkk): Ter saudade é muito melhor que caminhar sozinho!
Feliz por estar no Líbano, feliz por reconectar minha família depois de 100 anos, feliz pela oportunidade de ver, viver, sentir e se emocionar!
Para aqueles que não acreditavam, ou que só acreditam vendo! O São Tomé e Cicloturista Aurélio Magalhães, mostra para você! Bom apetite!
Fígado e gordura de carneiro crus. Iguaria típica do Líbano.
Desde o dia em que decidi dar a volta ao mundo de bicicleta, a ideia de conhecer o Líbano passou a ser vista quase como obrigação! Não só pelos sabores incontestáveis da sua gastronomia, mas também como uma ótima oportunidade de tentar restabelecer contato com o ramo da família que ficou por aqui.
Na minha empreitada em busca de um ramo longínquo da árvore genealógica dos Tanuris, consegui encontrar algumas evidências claras que realmente meus avós saíram desse lugar, e que os Tannourys que encontrei aqui em Baskinta, são realmente parentes distantes. No entanto, ainda é preciso mais investigações, pois alguns pontos não se conectam e a verdade se perde em meio a algumas variáveis.
Nas estradas do Líbano. Monte Líbano.
Chegando em Baskinta, terra dos meus antepassados. Líbano.
Chegar em Baskinta de bicicleta não é nada fácil! A cidade fica 1300 metros acima do nível do mar, apenas 50 km de Beirute na região de Monte Líbano. Mais precisamente aos pés da montanha Sannine, um badalado ponto de ski na estação de inverno.
Mount Faraya, Monte Líbano, região de Baskinta.
Baskinta cercada pelo Mount Sannine. Monte Líbano.
Igreja de Baskinta. Líbano.
Igreja de Baskinta, Líbano.
Com estradinhas estreitas e sinuosas serpenteando os morros, combinada a agressividade dos motoristas, pedalar no Líbano é uma aventura! Nas estradas secundárias é um pouco mais seguro, mas se paga caro com as inclinações doloridas de subidas intermináveis. Amenizadas apenas com meus pensamentos, tentando conectar histórias, lembrando dos meus avôs e imaginando como seria esse encontro, caso ele houvesse. Tenho pego dias lindos no Líbano. Só no dia que cheguei em Baskinta peguei chuva! Era meu avô mandando sinal de fumaça! kkkk Ele ficava bravo quando o homem do jornal dizia que o tempo estava bom e que iria fazer sol! Para ele, que tinha intimidade com a terra, tempo bom era chuva! kkk Lembrei dessa história quando começou a chover. Meu olho choveu também! Gostoso! Cheio de saudade e lembranças boas!
Meu contato na região era com Micho Saliba, da cidade de Bteghrine (950 m de altitude), 10 km de Baskinta. Fiz contato com ele através do Couchsurfing. A família se organizou rapidamente e logo no dia seguinte fomos procurar meus parentes.
A sorridente Tina, Sra. Abriza Yolla, mãe dos irmãos Micho, Naji e Nadin. Bteghrine, região de Baskinta. Líbano.
Muito bem tratado pela família Saliba. Bteghrine. Líbano
Laurice e Joseph foram os dois primeiros parentes que conheci. Com a ajuda do prefeito da cidade de Baskinta, que trouxe o livro de registro de migração com anotações em Árabe, começamos a buscar os nomes dos meus Bisavós.
Prima Laurice com o livro de registro de migração de Baskinta, Líbano.
Joseph, Laurice e eu, formalizando o grau de parentesco. Casa da família Tannoury. Baskinta, Líbano.
A princípio, pensei ser um livro de registro de migração, com os nomes dos que deixaram Baskinta. E aí surgiu o primeiro questionamento. No Livro, encontramos Mahfud e Nur (Afonso e Leonor Tannoury- único casal com esses nomes que migrou para o Brasil em 1910). Até ai tudo bem! Mas o quê o nome do meu Tio Avô, Camillo (Jamil em árabe) estava fazendo ali? Ele é o filho mais velho de seis irmãos nascidos todos no Brasil, entre eles meu Vô Luiz (1922), pai da minha mãe, que também se chama Leonor (1945). O Tio Camillo nasceu em 1914. Meus bisavós migraram em 1910. Minha cabeça rodava com a quantidade de perguntas que ficavam sem respostas dos dois lados… Eu não conseguia responder 99% das perguntas que eles me faziam… e eles menos ainda, das quais eu perguntava! E ainda havia a dificuldade da língua. Depois do árabe, o idioma mais falado por aqui é o francês. Dei muita risada neste processo, mas estava de alguma forma ansioso, nervoso! Inquieto, esperando a confirmação. Entendi então, que o livro não era um registro de migração simples. Ele trazia dados e informações atualizados de tempos em tempos. Alguém soube que meu Tio Camillo havia nascido e é por isso que o nome dele também estava no livro.
Bingo! Estava na pista certa!
Para confirmar a história, os Tannourys de Baskinta são vizinhos da família Akuri e Karam, todos primos na verdade (com algum grau de parentesco), que migraram juntos para o Brasil. Aliás, é fato que minha bisavó tinha o sobrenome Karam. Estava escrito no livro! Me disseram que o Sr. Luis Akuri, pai do meu amigo Beto Akuri, de Marília, minha cidade natal e de muitos membros da minha família, esteve por aqui num passado não tão distante e tudo mais… Entre uma informação e outra, surgiu o nome da família Dau (Daou), sobrenome do tio Fahim, casada com a Tia Luiza, irmã do meu avô. Soube que ele se correspondia com cartas escritas em árabe com alguém daqui, mas ninguém soube precisar com quem. Isso sem falar nos trejeitos e narizes que de alguma forma confirmava o grau de parentesco! kkkk A torcida era tanta, que me perguntava se eu estava vendo coisa! kkk Nas fotos abaixo estão minha irmã Alessandra e minha prima Lina. Vocês conseguem ver alguma familiaridade nas duas? Ou eu estou ficando louco?
A história ia se confirmando e eu me emocionava a cada descoberta! A cada nome especulado! Fiz o vídeo que postei no facebook ainda muito emocionado. Minutos depois que me convenci que depois de 100 anos, estava conseguindo conectar dois ramos da árvore genealógica dos Tanuris (Me permitam adotar a escrita do meu nome). Clique aqui para ver o vídeo.
Bom, mas acontece que chegou a um ponto onde algo não fez sentido. Segundo o livro de registro, meu bisavô tinha um irmão chamado Sader que também foi para o Brasil. E para os Tanuris de Baskinta, Sader era realmente irmão de meu bisavô, mas eles acham que ele ficou no Líbano, ou que talvez tenha voltado do Brasil tempos depois. É fato, se a história se confirmar, que, esse ramo da família que encontrei descende diretamente de Sader, suposto irmão do meu bisavô que foi para o Brasil em 1910, casado com Nur Karam, que mais tarde herdou o sobrenome Tanuri, como explico no vídeo que mencionei acima. Tudo bate! Mas nada se confirma!
Os Tanuris de Baskinta possuem uma geração a mais que os Tanuris do Brasil. Do meu bisavô até mim, são quatro gerações. Laurice é a quinta geração. O pessoal lá, casam-se e geraram filhos mais cedo. Uma geração a mais em cento e poucos anos me parece normal.
Passei o final de semana com meus novos parentes. Abortei o plano de fazer um tour de bike e no sábado pela tarde conheci mais alguns membros da família. No domingo, prepararam um super banquete! Igualzinho nossa família, viu mãe! Vários pratos e muita fartura! Benza a Deus! kkkk
Mesa na sala de jantar da família Tanuri, Baskinta. Líbano.
Infelizmente não tive mais contato com o livro de registros de migração e não pude pesquisar mais. Me desculpem famílias Karam e Gerber, vai ficar para a próxima! Espero que compreendam!
Para nós Tanuris, lamentavelmente não consegui ir mais longe. Depois de muito tentar e cair sempre na mesma encruzilhada, achei melhor desistir das perguntas e resolvi curtir o momento junto com eles, assumindo o parentesco. Afinal, não vim de muito longe para nada! kkk Fica a semente plantada! Definitivamente me senti em casa! Passei uma noite lá com todos me tratando muito bem.
Michel e Charbel (duas crianças), Os irmãos Laurice, Lina e Maroun, eu, a Sra. Hanne,mãe dos irmãos e a prima Dalida Karam. Na casa da família Tanuri em Baskinta, Líbano.
Gostaria de agradecer as minhas primas Alessandra Tanuri e Leonor Maria Tanuri pelas informações. Elas fizeram a diferença! Agradeço também ao meu Tio João Batista Caetano Filho, ao qual também parabenizo, por ser o autor da pesquisa sobre nossa árvore genealógica. Muito obrigado a vocês!
E viva a TANURADA!!!