Jeju é a maior ilha da Coreia do Sul e um dos principais pontos turísticos do país. Além dos 560 mil habitantes, a ilha recebe todos os dias milhares de turistas. E não é por menos!
Formada por erupções vulcânicas, a ilha oferece lindos visuais de rochedos, praias de areias brancas e negras, cavernas, montanhas, cachoeiras, e muito contato com a natureza. A ilha também é famosa por diversos campos de golfes, plantações de tangerina e pelo chá verde.
Eu dei a volta completa na ilha. Pedalei exatos 231,5 km. Enfrentei vento forte, chuva e frio e o dia mais triste da viagem. Tudo vinha muito bem até aquele momento. Estava aprendendo bastante, animado com a boa comida e o lindo visual que a ilha oferece a cada curva contornada.
Fotografei os Dol-Harubang, as estátuas de pedras vulcânicas, consideradas deuses pelo povo local, que acreditam trazer proteção e fertilidade, além de proteger contra os demônios da realidade. Elas estão espalhadas por toda a ilha em diferentes formas e tamanhos.

Dol-Harubang, estátuas de pedras vulcânicas na Ilha de Jeju na Coreia do Sul
Conheci as Haenyeo ou as Sereias de Jeju que contam uma história bastante interessante sobre a cultura local. O povo de Jeju possui uma relação estreita com a pesca. Com os homens trabalhando em alto mar por semanas, as mulheres começaram a explorar a costa em busca de alimentos e adotaram a prática do mergulho em busca de algas, mariscos e moluscos, uma fonte inesgotável de alimentos naquela região. Com mais gordura corporal, se adaptaram melhor a temperatura da água e em tempo de escassez, ou com a dificuldade dos homens em arrumar uma embarcação para trabalhar, elas passaram a ser chefes de família, criando um forte atrito na cultura machista da Coreia, deixando os homens com as crianças e cuidando do lar. Usando apenas o ar dos pulmões, elas chegam a ficar 1 minuto debaixo da água e alcançam a profundidade de 20 m. Para recuperar o fôlego, soltam uma espécie de assobio característico conhecido como sumbisori, que me deixou com a pulga atrás da orelha antes de saber da história, sem saber de onde vinha o som ou onde estava o passarinho. Só mais tarde descobri que o som brotava dos pulmões.
Hoje, devido aos ataques de tubarões e riscos cardíacos causados pelo mergulho, e a falta de interesse das jovens em um trabalho tão difícil, existem menos de 5.000 mergulhadoras, e mais da metade acima de 60 anos. Embora em número bastante reduzido, essas mulheres se organizaram, criaram cooperativas, lojas e restaurantes e são consideradas as protetoras do mar e do meio ambiente, continuando a influenciar a cultura e o meio de vida dos moradores da ilha.

As Haenyeo – Sereias da Ilha de Jeju. Coreia do Sul.
Mas foi no Seongsan Ilchulbong que a minha viagem na ilha terminou, mesmo tendo mais um dia de pedal. O Seongsan Ilchulbong é a cratera de um vulcão adormecido no extremo leste a Ilha de Jeju. Com 182 m de altura, possui formação cônica, típica de um vulcão, com uma enorme cratera criada a mais de 5 mil anos. Fiquei mais impressionado com a vista de fora do que propriamente da cratera. Mesmo porque, foi nas escadarias em busca do topo que tive a pior experiência da viagem.

Seongsan Ilchulbong, vulcão na Ilha de Jeju, Coreia do Sul

Cratera do Seongsan Ilchulbong, Ilha de jeju, Coreia do Sul
Eu vinha em passos firmes, degrau por degrau. Com o vento gelado e a eminência de chuva adotei um ritmo mais rápido que as pessoas e segui determinado. Subir, fazer umas fotos e descer o mais rápido possível para fugir do vento gelado e procurar algum lugar para comer e passar a noite. E não sei no que eu pensava… acho que contava os degraus. Estratégia para chegar logo ao topo e não prestar atenção no esforço físico. No caminho, famílias, crianças, idosos. Todos os bancos ocupados servindo de descanso para recuperar o fôlego. E eu lá, me sentindo orgulhoso com a minha forma física.
Olhava para cima sem parar de contar. 365, 366, 367… Aí notei algo errado! Um grito. Um som oco! Um corpo no chão! Pessoas pararam de subir obstruindo o caminho… Olhar de espanto! Meio que por instinto continuei a subir e o corpo escondido pelos degraus começou a aparecer. Vi a respiração agonizante e o desespero dos familiares enquanto todos os outros se afastavam… Exitei por alguns segundos… mas não pude me omitir…
A medida que me aproximava fui tirando a máquina fotográfica do pescoço e a mochila das costas… e fui buscar na memória os conhecimentos que obtive em um treinamento de primeiros socorros anos atrás. Apontei para uma moça que certamente era parente e disse apenas ambulance, fazendo o sinal universal de telefone com a mão. Eu me lembrava que a primeira coisa a ser feita é determinar uma pessoa para pedir ajuda. Caso contrário a ajuda pode não chegar. Tipo, deixa que eu deixo ou achei que alguém tinha feito isso. Enquanto fui alinhando o corpo pesado, um rapaz chamava o homem pelo nome, batendo no rosto na tentativa de acorda-lo. Vi restos de alimento dentro da boca. Me deu nojo! Ele agonizando… Eu havia visto um segurança alguns metros abaixo. Sabia que ninguém ali falava inglês. Disse apenas duas palavras para um menino. Ele entendeu rápido e saiu descendo as escadas para chamar o segurança. Eu sabia que precisava verificar se havia alimento na garganta… O rosto começava a ficar cada vez mais vermelho e a respiração agonizante aumentava. Aquela visão me amedrontava e tirava a minhas forças. Aí veio uma respiração longa, o rosto foi avermelhando, a impressão que tive era que o homem explodiria… De vermelho ficou roxo,e a respiração parou… Minha nossa! Eu não tinha forças para colocar a minha mão, muito menos a minha boca na boca daquele homem… Me sentia culpado! Pedi para o rapaz enfiar a mão na garganta do homem e limpar, com outro gesto típico… Ele entendeu… e em meio a seus dedos veio um punhado de arroz… Fiquei ainda mais enojado e quase vomitei… Exitei mais uma vez e quase levantei… Sabia que era o único que poderia tentar fazer alguma coisa e comecei a pensar na distância que estávamos de algum socorro.
Comecei a comprimir o tórax… contando agora as compressões… 1, 2, 3… pensando que não ia dar para fazer respiração boca a boca… 11, 12, 13… estava com nojo e ao mesmo tempo assustado… 21, 22, 23… quando cheguei nos 30 pedi para o rapaz, mais uma vez com sinal. Me senti culpado! E nem olhei… Falei apenas 2 em inglês… Two… E comecei a manobra novamente… No 30 ele fez mais duas respirações… Mas o pavor tomou conta e ele começou a fazer a respiração em uma frequência menor e desordenada. Eu comecei a me cansar e já estava sem forças para afundar o tórax daquele homem como deveria… Pedi para o segurança assumir o meu lugar… Tentei explicar que precisaria ser mais forte e profundo… mas o homem continuou em seu ritmo, sem a força necessária. Tirei as luvas e o gorro. Já estava suando. Retomei. Sem antes notar a esposa segurando a mão com as pontas dos dedos roxo. Mas não consegui ficar muito tempo. O segurança reassumiu o meu lugar. Um fio de esperança… mesmo com a certeza do pior…ouvi a sirene da ambulância… muito tempo se passou… a sirene estava longe e por mais que corressem era impossível subir as escadas em menos de 5 minutos. Já estávamos perto do topo. Fui me afastando… peguei minhas coisas… vi o olhar do rapaz… ele me olhou… não sei se me agradecia ou se cobrava a minha presença. Eles pararam também. Eu subi, sem olhar para trás.
A pressa da subida desapareceu. Eu me sentei para esperar. Não queria ver aquele corpo novamente e buscava explicação para tudo aquilo. Por que justo na minha frente? E agora, como vou tirar isso da minha cabeça? Quebrou o clima da minha viagem! Que egoísta! O cara morreu!!! Mas justo na minha frente!!!
Tudo que eu pensava me gerava culpa e frustração… Será que fiz tudo que eu pude? Mas não era minha responsabilidade… Que é isso!!! Nessas horas tem que se doar ao máximo! Por que eu parei antes de chegar o socorro! Meu amigo, passou mais de 15 minutos… chances zero! Ahhh.. Agora virei Deus!! Matei o sujeito! É realidade!!
Eu estava confuso e dava tudo por um consolo… Não sabia em que pensar… Aí surge essa imagem no céu…

… um raio de luz em meio ao mal tempo…
Seria uma mensagem, a alma indo embora ou um recado para minha falta de fé? Minha nossa! Não sei como consegui tirar a foto! Pura coincidência!! Quando vou conseguir apagar essa imagem da cabeça?
Com a cabeça molhada de suor o frio me trouxe de volta a razão… Desce logo ou você será o próximo! Para com isso meu! Eu já entendi… vou descer… mas não precisa dramatizar assim…
E enquanto eu descia minha mente trabalhava e ao mesmo tempo que me senti vulnerável sabia que precisava ser forte.
Passei pelos médicos e socorrista… o corpo ainda estava lá! Olhei pela última vez, mesmo sem querer… me desculpei! Continuei descendo… fora de mim…
Quando cheguei na sala de operações, onde havia deixado minha bike, avistei um desfibrilador… Minha bicicleta estava bem em frente, obstruindo a passagem…
Aqui?! Isso era para estar lá em cima!!!!! Tive vontade de gritar com os funcionários… não tive força! Calmamente apontei para o aparelho e fiz um sinal com o indicador… Lá em cima! Eles abaixaram a cabeça complacentes… Se o aparelho tivesse lá em cima as chances do homem eram bem maiores…
Mas não tinha forças de falar naquela hora…
A imagem daquele homem parece uma sombra em meus pensamentos. Não consigo pensar em outra coisa. Tudo que eu faço não é capaz de apagar o que vivi. Sei que só o tempo vai amenizar. Isso já faz 3 dias. E resolvi escrever para tentar colocar para fora e esquecer de vez essa história. Até tentei ilustrar o texto com algumas histórias interessantes. Acho que estou confuso! Me desculpem por isso! Não sei! Um sentimento triste toma conta de mim…